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Contos e Crônicas |
Torcida adversária
Aquele dia eu acordei cedo e estava “pilhado” como adjetivou meu filho. Era um lindo sábado do inverno curitibano.
Corri para a cozinha para engolir rapidamente um café e propor algo que certamente ninguém pensara ainda.
“Sabe quem joga aqui amanhã?” Joguei a pergunta no ar pronto para exibir minha sapiência frente à ignorância de todos.
“O Corinthians” Foi a resposta quase em uníssono dos três familiares que ocupavam aquela cozinha. Confesso que fiquei decepcionado, primeiro porque os três responderam sem que fosse necessário eu exibir meu conhecimento, segundo porque a resposta foi bastante desanimada, como se isso não interessasse a ninguém.
Já estava pronto para explicar que o jogo fazia parte da 12ª rodado do campeonato brasileiro daquele ano, que iria acontecer no chamado Alto da Glória, às 16hs do domingo, que era muito importante para o Corinthians que estava tentando manter uma invencibilidade importante. Mas tudo isso ficou sem sentido frente à apatia com que minha pergunta foi recebida.
Mas não desisti. Ataquei novamente:
“Já vi que nessa cozinha não tem nenhum corinthiano maloqueiro e sofredor, mas EU sou! E quero participar a todos que vou comprar ingresso e vou ao jogo amanhã”
Terminei a frase e levantei o queixo para deixar claro minha arrogância frente àqueles desanimados pseudo-torcedores.
“Pai... Acorda, né!” Tive que ouvir isso do meu filho mais novo. Que continuou: “Você acha que nós já não tentamos comprar ingresso? Até a mãe ia no jogo, só que acabaram os ingressos e já faz um tempão”
Menos mal.Aquele desânimo não era com o jogo em si, e sim com a impossibilidade de ir ao jogo. Meu lado mosqueteiro chegou a ficar contente.
“Pensei que vocês não estivessem interessados no jogo!”
“Pára, pai. No primeiro dia que começou a venda dos ingressos nós fomos no shopping, na bilheteria do estádio, em todo lugar e já não tinha mais” Dessa vez foi o mais velho que explicou.
Mas, como já disse, eu tinha acordado “pilhado” e não seria uma primeira negativa que iria me desanimar.
“Pois vamos procurar a torcida organizada”
“Já fomos”
“Vamos comprar ingresso da torcida adversária”
“...”
Não houve respostas. Isso significava um ponto para mim.
“E então?” Perguntei
“Na torcida do coxa, pai? Que coisa mais chata!”
“Chato é ficar em casa sabendo que o timão está jogando há poucos metros da nossa casa. Vamos lá, sacudam a poeira, façam cara de coxa branca e vamos comprar ingresso”
Nem eu estava convencido de que aquela era uma boa idéia, mas, como já dizia o sábio, a palavra depois de proferida não tem como voltar atrás.
Peguei meus dois garotos, um de cada lado, beijei a esposa e rumei para o estádio do adversário (ou inimigo) para a compra dos ingressos.
Ao chegar próximo ao estádio já deu para perceber que a tarefa não seria das mais agradáveis. Não havia lugar para estacionar nos quarteirões próximos, tive que deixar o carro há uns 2 quilômetros de distância e fazer uma caminhada forçada que não estava nos planos.
Chegando próximo às bilheterias uma fila imensa tanto no tamanho quanto na desorganização quase que me desanimou, mas lembrei-me novamente da frase que estava norteando aquela minha manhã: a palavra depois de proferida não tem como voltar atrás. Como explicar para dois pré adolescentes que eu me enganara e que não seria tão ruim ouvir o jogo pelo radio, com o Corinthians jogando há alguns metros de casa?
Procurei por uma fila menor, mas isso definitivamente não existia. Procurei por algum conhecido que estivesse na frente em alguma das filas, mas também não encontrei ninguém Não me restou outra alternativa, senão me posicionar no final da fila que me pareceu menos comprida e aguardar pacientemente por aquela romaria interminável.
Aquela experiência já não estava das melhores, mas quando os torcedores começaram um empurra-empurra para mostrar a insatisfação com a desorganização e demora da fila, aí sim a situação ficou insustentável.
“ô pessoal, aqui tem criança!” Gritei com a maior força e educação que pude reunir naquele momento.
“Cala a boca ô corinthiano do c...” Foi a resposta imediata.
Ops, será que me reconheceram? Mas, pensando bem, se fosse algum amigo meu, certamente não iria falar alto assim e muito menos naquele tom. Fiquei quietinho torcendo para ter sido apenas uma brincadeira de mau gosto, enquanto notava o olhar desapontado dos meninos que provavelmente esperavam que eu tirasse aquela situação a limpo.
Como eu sempre tive para mim a convicção de que é melhor ser um covarde vivo do que um herói morto, fiz cara de paisagem e fingi que não era comigo.
O empurra-empurra continuou por mais um tempo, depois a fila começou a andar um pouco mais rápido e no final das contas ninguém mais se lembrava da minha reclamação.
O duro desse tipo de fila é que sempre tem alguém que quer puxar conversa. Eu não sou particularmente fã de conversar com desconhecidos, não que eu não goste, mas é que não tenho assunto e a conversa fica entrecortada e acaba abruptamente, mostrando que era melhor não ter começado.
Mas esse tipo de lugar é particularmente propício a conversas entre desconhecidos, primeiro porque o tempo que se gasta ali é muito grande e sem ter o que fazer. Segundo porque todos dali têm algo em comum, ou pensam que tem: Torcem loucamente para o mesmo time. E aí foi inevitável.
“Amanhã tem que dar nós, heim?” A voz grave que ecoou atrás de mim me fez tremer. Imediatamente comecei a pensar se valia a pena levar aquela conversa adiante e correr o risco de ser desmascarado, ou dar um sorriso amarelo de quem não quer ser importunado. Escolhi a primeira opção.
“Pois é... Temos que ganhar.” Respondi olhando para trás e encarando um sorridente jovem que por aqui chamariam de polaco.
O polaco não se contentou com a resposta e prosseguiu.
“Será que o técnico vai com o Ademir?”
Arrisquei o básico: “Eu não vi a escalação”
“Eu acho que o Ademir tem que entrar jogando. Tem que ir pra cima dos caras. Não é porque eles estão na nossa frente que a gente tem que se acovardar”
Tentei não me arriscar muito: “Eu sou partidário do 3-5-2”
“O que!!!” Ele praticamente gritou. “Então você quer que continue como está hoje?”
Notei que não fui feliz e tentei arrumar: “Mas hoje nós jogamos no 5-3-2. Eu acho que temos que arriscar, mas sem dar muita chance para o adversário”
Ele começou a perder a paciência comigo. Também depois de tanto tempo de fila não tem paciência que resista.
“Me desculpe, meu amigo, mas você não entende nada de futebol” Metralhou ele. “Que tipo de coxa branca você é que nem sabe em que esquema tático seu time está jogando?”
Tentei me defender sem dar armas ao inimigo, mas também sem assumir minha ignorância em relação ao time dele. “Veja bem, você tem seu ponto de vista e eu tenho o meu. Eu não fico preso ao que os comentaristas de vídeo tape ficam falando por aí, eu tenho minha opinião e para mim o coxa joga no 5-3-2, e se não mudar o esquema de jogo vai continuar perdendo”. Imediatamente me arrependi de ter partido para esse lado da conversa, mas já tinha falado e não dava para voltar atrás.
O polaco ficou roxo de raiva por se ver contrariado e quase quis me esganar com aquelas mãos que pareciam mais duas raquetes de tênis. Imediatamente outros colegas de fila entraram na discussão e por pouco não sai uma briga que certamente ficaria na história do Couto Pereira.
Felizmente entrou tanta gente da discussão que se esqueceram de mim e isso até ajudou a passar o tempo e a fila até parece que andou mais rápido.
Estávamos quase chegando na bilheteria quando alguém gritou, protegido pelos policiais: “Acabaram os ingressos”
A turma atrás de mim aparentemente nem ouviu o aviso, pois continuavam na interminável discussão sobre escalação, esquema tático e outras coisas do gênero.
Peguei meus dois filhos pelas mãos e, me esgueirando no meio da multidão, segui em direção ao carro.
Enquanto os meninos se lamentavam, eu silenciosamente agradecia a sorte de ter acabado os ingressos, pois se até chegar nas bilheterias eu me meti em tanta confusão, o que não aconteceria se eu conseguisse entrar no estádio na torcida adversária?
Sem dúvida, não seria tão ruim ouvir o jogo pelo rádio na tranqüilidade da minha casa.
(postagem 189)
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