quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Não Sonho Mais

Chico e sua música














Não Sonho Mais

A cabeça privilegiada de Chico Buarque nos premiou com belíssimas pérolas que já foram analisadas por diversas mentes, brilhantes ou não. Porém a ideia aqui não é fazer uma análise poética ou musical de suas canções, mas sim brincar com as letras sempre inteligentes desse autor e tentar entender o que ele disse nas linhas e/ou nas entrelinhas. Enfim, pesquisando e analisando, busco aprender um pouco mais sobre meu ídolo.


O discurso desta música composta para o filme República dos assassinos, de Miguel Faria, é heterobiográfico, bem ao feitio de Chico. Neste, quem fala é um travesti, dirigindo-se ao seu amor, um policial. Segundo o próprio Chico, "é uma letra violenta pra burro''.

O travesti relata ao policial, atemorizadamente, o seu sonho: o desejo de vingança traz uma multidão de pessoas - todas com um bom motivo para esfolar o policial - numa caravana, num trem, para o acerto de contas. E de nada adiantava ele correr destes mortos. vivos, flagelados e humilhados: quanto mais ele corria, mais piorava a situação, inclusive se atolando. Ao pé da ribanceira.

Todo aquele povo, vítima do policial, estabelece a vingança definitiva. Antropofagicamente, matam, "viram as tripas" e comem "os ovo" do carrasco (numa alusão a que, devorando os testículos dele, estariam impedindo que fossem gerados seres tão maléficos e indesejáveis quanto ele). A comemoração é geral, e aquele povo "põe-se a cantar" (essa imagem Chico usa muito: vide "Apesar de você" e "Rosa-dos-ventos").

Assim como em “Geni e Zepelim”, o autor utiliza metáforas escatológicas, muito em moda na época. Apesar do ritmo alegre e frenético da canção, a ironia da letra é servida crua, em carne viva, em uma violência explícita. No verso “Comemos os ovo”, propositalmente escrito fugindo da combinação do plural, mostra a castração feita sem piedade, sendo os testículos devorados, submetendo o amado a mais perversa das humilhações contra a virilidade. No fim, há o momento de conciliação, em que após um sonho tão cruel e libertador, o travesti volta à submissão do amado, e pede que não o castigue, pois não terá outro sonho tão devastador.

O final da música tem um arranjo "bem bolado" - o som parecido com o de um trem, como a indicar que o trem no qual viajara a caravana vingadora - após a missão cumprida - estivesse de partida.



Não Sonho Mais
(Chico Buarque)

Hoje eu sonhei contigo,
Tanta desdita! Amor, nem te digo
Tanto castigo que eu tava aflita de te contar.

Foi um sonho medonho
Desses que, às vezes, a gente sonha
E baba na fronha e se urina toda e quer sufocar.

Meu amor, vi chegando
Um trêm de candango
Formando um bando,
Mas que era um bando
De orangotango pra te pegar.

Vinha nego humilhado,
Vinha morto-vivo, vinha flagelado.
De tudo que é lado
Vinha um bom motivo pra te esfolar.

Quanto mais tu corria
Mais tu ficava, mais atolava,
Mais te sujava. Amor, tu fedia,
Empesteava o ar.

Tu que foi tão valente
Chorou pra gente. Pediu piedade
E, olha que maldade,
Me deu vontade de gargalhar.

Ao pé da ribanceira acabou-se a liça
E escarrei-te inteira a tua carniça
E tinha justiça nesse escarrar.

Te "rasgamo" a carcaça
Descendo a ripa. "Viramo" as tripas,
Comendo os "ovo", ai!,
E aquele povo pôs-se a cantar.

Foi um sonho medonho,
Desses que, às vezes,
A gente sonha e baba na fronha
E se urina toda e já não tem paz.

Pois eu sonhei contigo e caí da cama.
Ai, amor, não briga! Ai, não me castiga!
Ai, diz que me ama e eu não sonho mais!

(postagem 172)

5 comentários:

  1. inha interpretação difere da sua. Só o "trem de candango" já diz tudo. Brasília, exército chegando e massacrando tudo. "Descendo a ripa", então, só comprova minha teoria.

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    1. Mas essa trecho, confirma a análise :

      "
      Vinha nego humilhado,
      Vinha morto-vivo, vinha flagelado.
      De tudo que é lado
      Vinha um bom motivo pra te esfolar.
      "

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  2. muito bom, o filme fala sobre o esquadrão da morte

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  3. Aqui suponho, mas só o próprio Chico pra confirmar, que ela é a mesma travesti de Geni e o Zepelim, Genivaldo

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