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Leitura |
Carlos Heitor Cony
Ele já "passou por esse blog", mas como somos muito fãs do Cony e hoje é aniversário dele, vamos falar mais um pouquinho desse escritor carioca.
Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 14 de março de 1926, fez humanidades e curso de filosofia no Seminário de São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os romances “A Verdade de Cada Dia” e “Tijolo de Segurança”.
Cony trabalha na imprensa desde 1952, inicialmente no Jornal do Brasil, mais tarde no Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista e editor.
Depois de várias prisões políticas durante a ditadura militar e de um período no exterior, entrou para o grupo Manchete, no qual lançou a revista Ele e Ela e dirigiu as revistas Desfile e Fatos&Fotos.
Atualmente, é colunista da Folha de S.Paulo, comentarista da rádio CBN.
Como diretor da teledramaturgia da Rede Manchete, apresentou os projetos e as sinopses das novelas “A Marquesa de Santos”, “Dona Beija” e “Kananga do Japão”.
Em 1998, o governo francês, no Salão do Livro, em Paris, condecorou-o com a L'Ordre des Arts et des Lettres.
Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 2000. “O Ventre” romance de estréia de Cony fez em 2008 cinquenta anos.
O burguês
(Carlos Heitor Cony)
Foi durante a noite que, de repente, ele se fez a pergunta:
— Por que não?
A pergunta finalizava a série de pensamentos que haviam começado horas antes, quando estava no teatro. Fora com a mulher assistir a uma peça de sucesso, com artistas de sucesso, estréia recente e também de sucesso. As duas primeiras noites haviam sido dedicadas à alta sociedade, às classes produtoras, ao Corpo Diplomático, às autoridades constituídas e a penetras de diferentes origens e feitios. Na altura da terceira apresentação, ele chegara em casa e a mulher o intimara:
— É o fim, Figueiredo! Todo mundo já viu a peça, menos nós. Tem de ser hoje.
Uma semana depois, a peça seria suspensa por falta de público, mas naquela terceira noite ele teve de se acotovelar na entrada, discutir com os bilheteiros e terminar sendo explorado por um cambista que lhe vendeu duas péssimas poltronas com ágio pesado e imerecido.
Suportou, lá dentro — e estoicamente — os primeiros momentos da peça, mas ainda em meio ao primeiro ato desanimou de procurar entender o que se passava no palco. Era um drama complicado e palavroso, uma jovem que tinha neurose e amantes, um analista, uma enfermeira lésbica e, presidindo a tudo, um pai severo e asmático. Em suma: um conflito acima de suas possibilidades e de seu interesse.
Quando ia ao cinema, sempre podia dormir quando o filme seguia um rumo surpreendente assim. No escuro o cochilo ficava impune, a mulher nem suspeitava. À saída, ele concordava com a opinião da mulher e conseguiam chegar em casa sãos e salvos. Mas no teatro era difícil o cochilo. Havia luz, e pior que a luz, havia sempre a iminência de algo espantoso, o cenário despencar, a roupa da atriz cair, um ator ter enfarte ou esquecer o texto, um fósforo botar fogo no pano de boca. Tais e tantos atrativos impediam-no de dormir, mas propiciavam discreta dormência, o pensamento solicitado ora pelo calor, ora pela peça, ora ainda pelo pigarro de um velho na platéia, ou pelo sapato um pouco apertado que Ema — a mulher — o obrigara a usar.
Tivera um dia calmo, calmos eram todos os seus dias. A firma, apesar do sócio que era uma toupeira, prosperava. Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente, a peça já era um motivo.
A frase, dita por alguém no palco, chamou-o de volta. Ele já contara as pregas do lado direito da cortina que compunha o fundo do cenário, e preparava-se, resignado, pra contar as pregas do lado esquerdo, quando ouviu alguém falar em morte.
Não, não ameaçavam ninguém de morte. O drama do palco era existencial, não continha mortes nem ameaças de. Fora uma frase convencional, assim como "não devemos matar a velha de susto", ou "se a velha souber disso pode morrer".
Matar ou morrer? Não chegava a ser uma opção, nem no palco, nem em sua vida, mas uma série de pensamentos que tinham, ora a sua lógica, ora o seu absurdo, e em ambos os casos, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em sua própria morte, mas sabia que havia gente que morria e gente que matava. Os que morriam eram os doentes, os suicidas, os atropelados, os assassinos, os passageiros de avião ou da Central do Brasil. Os que matavam eram os criminosos, os ladrões noturnos, os tiranos, os motoristas de ônibus.
Não era agradável pensar em morrer. Logo retirou este elemento de sua opção e ficou apenas com o matar.
Matar o quê? Matar para quê? Na peça, falavam em matar uma velha de susto. Ele não tinha velha nenhuma à vista. A mãe já morrera, as parentas de velhice mais agressiva também já haviam morrido. Havia a sogra, ainda, mas não chegava a ser uma velha, e, além do mais, era uma excelente pessoa.
Se não adiantava matar uma velha, matar o quê?
Matar por matar, amor à arte, eis a questão. Matar para experimentar os nervos, ou para provar a si mesmo do que era capaz. Sim, isso justificava um crime. Mas para provar do que era capaz, não bastaria matar — isso qualquer idiota poderia fazer. Tinha de matar e permanecer impune — para poder se olhar no espelho e se sentir redimido, confiante: sou um caráter!
Foi então que surgiu o problema — que seria, nos próximos dias, o seu problema, o único problema realmente sério de sua vida — como obter o crime perfeito? Matar o porteiro de seu edifício, por exemplo, nunca seria um crime perfeito. Mais cedo ou mais tarde a polícia apertaria os moradores do prédio e ele acabaria confessando. Para matar impunemente teria de escolher um comerciário de Brás de Pina, uma funcionária subalterna que voltasse, tarde da noite, para o Leblon.
Mas seria estúpido matar sem motivo, embora matasse perfeitamente. O crime perfeito, sem lucro pessoal, não lhe interessava, aliás, pensando bem, agora que o primeiro ato terminava, nenhum crime lhe interessava.
Teve coragem para o comentário.
— Uma peça muito profunda!
A mulher não concordou nem discordou. Apenas disse:
— Vamos esperar pelo resto. Acho que vai sair um escândalo!
Foi a vez de ele concordar, embora não suspeitasse que tipo de escândalo estava prestes a estourar. Saiu para o hall circulou entre estranhos, bebeu um gole d'água gelada, sem sede mesmo, só para passar o tempo.
Durante o segundo ato os pensamentos seguiram outro rumo. Surgiu no palco um pastor protestante. Surgiu também um militar reformado que era mudo — e ele começou a pensar em como seria sua vida — e como seria ele mesmo — se não tivesse voz.
Chegou à conclusão e ao fim da peça: poderia manter o mesmo padrão de vida se, por acaso, ficasse sem voz. Era-lhe coisa inútil, espécie de adorno. Para ganhar dinheiro e dormir com a mulher — a voz era dispensável, uma responsabilidade incômoda.
Ao saírem, cumprimentou com a cabeça alguns conhecidos e fez a viagem de volta imaginando-se mudo. Conseguiu chegar em casa sem ter pronunciado uma só palavra — o que não era uma vantagem especial, sempre que iam ou que voltavam de algum lugar, a mulher é quem falava, ele apenas ouvia.
A grande oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o carro na garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o vidro da porta:
— Suspenda o seu vidro, Ema.
Àquela noite, engoliu em seco e esperou que a mulher saísse para, então inclinar-se no banco, com algum esforço para sua espinha já bombardeado por sedimentações calcáreas que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha até fechar o vidro.
Na cama, preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois, retornaram à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha insônia. A firma prosperava, vendia material de escritório aos ministérios militares, era pago em dia, e não faltavam encomendas, tanto Marinha como o Exército e a Aeronáutica — felizmente para ele e para Pátria — gastavam mais em papel timbrado do que em pólvora.
Geralmente, caía duro em cima da cama. De quinze em quinze dias ou de vinte em vinte dias, procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto da parte dela.
Quando percebeu as horas, viu que gastara a noite toda pensando. Tinha disciplina interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo. Virou para o lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também definitivo:
— "Se não fosse a polícia, eu matava!"
(postagem 114)