quarta-feira, 4 de junho de 2014

José Lins do Rego

Leitura













José Lins do Rego

"Não gosto de trabalhar, não fumo, durmo com muitos sonos e já escrevi 11 romances. Se chove, tenho saudades do sol; se faz calor, tenho saudades da chuva. Temo os poderes de Deus, e fui devoto de Nossa Senhora da Conceição. Enfim, literato da cabeça aos pés, amigo dos meus amigos e capaz de tudo se me pisarem nos calos. Perco então a cabeça e fico ridículo. Afinal de contas, sou um homem como os outros e Deus permita que assim continue." Esta é a auto-descrição de José Lins do Rego, considerado um dos maiores ficcionistas da língua portuguesa.

José Lins do Rego Cavalcanti nasceu em 03 de junho de 1901, no Estado da Paraíba, e morreu em 1957 na cidade do Rio de Janeiro. Era filho de fazendeiros. Com a morte da mãe, passou a ser criado pelo avô, num engenho de açúcar.

Viveu a maior parte de sua vida em Recife, cidade onde se formou em Direito. A partir de 1936, passou a viver na cidade do Rio de Janeiro.

O dia a dia e os costumes tanto de Pernambuco quanto do Rio de Janeiro eram evidentes em suas obras literárias.

Ele deu início ao conhecido Ciclo da Cana-de-Açúcar com a obra: Menino de Engenho. Além deste livro, este notável escritor escreveu outros livros, como: Doidinho, Banguê, O Moleque Ricardo e Usina. Este último possui narrativa descritiva do meio de vida nos engenhos e nas plantações de cana-de-açúcar do Nordeste.

Em sua segunda fase, José Lins do Rego escreveu romances que tinham como tema a vida rural. Deste período, fazem parte as seguintes obras: Pureza, Pedra Bonita, Riacho Doce e Agua Mãe.  

No ano de 1943 publicou o livro Fogo Morto, considerado a sua obra-prima; posteriormente escreveu Euridice, Cangaceiros, alguns ensaios, crônicas e outras obras.

Este notável escritor foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras e teve suas obras traduzidas para diferentes idiomas, entre eles, o russo.

Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, referiu-se ao seu antecessor, o ministro do Supremo Tribunal Federal Ataulfo de Paiva, como alguém que "chegou à academia sem nunca ter gostado de um poema". A partir desta nota de sarcasmo, seus discursos da academia passaram a ser previamente censurados.

A obra de José Lins do Rego, bastante conhecida, foi adaptada para o teatro, o cinema e televisão. Em 1956 Lins do Rego publicou "Meus Verdes Anos", um livro de memórias. No ano seguinte morreu de um problema hepático, aos 56 anos, no Rio de Janeiro.


O RIO

O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no “o rio”. E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d’água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão.

O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava.

Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não havia ninguém.

O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim:

- Vou dizer ao velho!

Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim mestre de vida.


(postagem 149)

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