quarta-feira, 21 de maio de 2014

Os cães e o centro do universo

Contos & Crônicas














Os cães e o centro do universo

Os cães são o nosso elo com o paraíso. 
Eles não conhecem a maldade, 
a inveja ou o descontentamento. 
Sentar-se com um cão 
ao pé de uma colina numa linda tarde, 
é voltar ao Éden, 
onde ficar sem fazer nada não era tédio, 
era paz.
Milan Kundera

Sempre vejo passar pela minha rua um catador de papéis que, invariavelmente, é seguido por dois cães. Às vezes tem outros também o seguindo, mas tem dois que sempre estão com ele, seguindo-o por onde for.

Os dois cães poderiam ser irmãos, pois tem os mesmos olhos tristes. Ambos tem o pêlo desgrenhado marrom claro, sendo que um tem na cara uma grande mancha marrom escura e em volta do olho uma mancha preta, ao contrário do outro que é totalmente marrom claro.

O catador de papéis passa diariamente, quase sempre no mesmo horário, com seu carrinho abarrotado de papéis, papelões e outros materiais como plásticos, garrafas pet e etc e os dois cães seguem atrás como guardas e amigos inseparáveis.

Olhando com olhar estritamente humano é difícil entender o motivo pelo qual aqueles dois cães, que não me parece que sejam bem tratados, devotam tanta afeição àquele senhor que tem tão pouco a oferecer, inclusive já o vi enxotando os cães que batem em retirada e o aguardam na próxima esquina abanando o rabo com a felicidade de quem viu uma pessoa amada e a pureza de quem não guardou mágoa da última vez em que foi enxotado, mesmo isso tendo sido alguns minutos atrás.

O catador de papéis segue atrapalhando o trânsito, ignorando carros e transeuntes, seguindo com seu carrinho e seu sorriso sem dentes.

Atrás dele seguem os dois cães que não se importam se o seu dono cheira bem ou se tem dentes, se tem amigos ou se é solitário. O centro do mundo para eles, provavelmente é o dono com seu carrinho e tudo o mais gira em torno deles.

No fim da noite provavelmente o catador se esquenta com uma garrafa de pinga barata e dorme o sono dos justos e dos bêbados, na porta de alguma pizzaria, enquanto os dois cães fazem guarda, mantendo-se assim enquanto houver movimento na rua, e depois se enrodilham próximo do seu dono e dormem um sono leve, sempre prontos para abrir os olhos ou mesmo levantar a qualquer ruído ou movimento que possa ser interpretado como ameaça a seu dono.

O mesmo dono que no dia seguinte vai acordar de ressaca e descontar toda sua raiva nos dois amigos.


(postagem 143)

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