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Chico e sua música |
A cabeça privilegiada de Chico Buarque nos premiou com belíssimas pérolas que já foram analisadas por diversas mentes, brilhantes ou não. Porém a ideia aqui não é fazer uma análise poética ou musical de suas canções, mas sim brincar com as letras sempre inteligentes desse autor e tentar entender o que ele disse nas linhas e/ou nas entrelinhas. Enfim, pesquisando e analisando, busco aprender um pouco mais sobre meu ídolo.
Cálice
Fonte principal: Livro: Chico Buarque (Análise poético-musical) de Gilberto de Carvalho
Esta música, de autoria de Chico e Gilberto Gil, somente pôde ser gravada em 1979, embora ela já existisse desde 1973, ocasião em que houve a tentativa de apresentação no "show" Phono 73. Nesta ocasião a música foi proibida pela Censura exatamente na hora em que Chico e Gil iam apresentá-Ia. E, segundo Adélia Bezerra de Meneses Bolle, para impedir que a palavra 'cálice' (cale-se) fosse pronunciada, cortaram o som de todos os microfones, um após o outro. Chico, com raiva, começava a cantar num deles, o som era desligado; ele pegava o outro, também faziam o mesmo, e outro, e outro. Assim, para que ninguém ouvisse 'cale-se', a censura levou aquelas três mil pessoas presentes ao 'show' a verem o 'cale-se' dramaticamente concretizado nos microfones calados".
Trata-se de uma letra cheia de metáforas usadas para contar o drama da tortura no Brasil no período da ditadura militar.
Os dizeres "Pai, afasta de mim este cálice", que funcionam como um estribilho, são provenientes da Bíblia. O que não impede o autor de sugerir um palavrão ("filho da puta"), haja vista a substituição por "filho da outra" - sugestão essa reforçada pelas rimas com "escuta" e "bruta". A realidade é chocante, para o sujeito do discurso, daí ele querer "outra realidade menos morta".
Como não quer compactuar com o prazer servido à custa da matéria humana (sangue), diz para o Pai (entidade que aí tem múltiplas significações - a autoridade, o sistema dominante, Deus "mesmo") que afaste o cálice de "vinho tinto de sangue". Afinal, a repressão demasiada, "engordada", não adianta ("De muito gorda a porca já não anda") e os seus instrumentos tornam-se ineficazes ("De muito usada a faca já não corta"). É mencionada sua dificuldade na sua própria tentativa de expressão: "Como é difícil, pai, abrir a porta. Essa palavra presa na garganta".
E se diz que, mesmo esmagadas todas as formas de expressão, ainda "resta a cuca dos bêbados do centro da cidade". Que, como ele, podem questionar a própria vida - que, talvez, "não seja um fato consumado" -, os valores morais ("Quero inventar o meu próprio pecado") e até morrer da forma que lhes convém ("Quero morrer do meu próprio veneno"). Enfim, ter o seu próprio juízo. E ser esquecido.
É uma música tão rica que tem que ser lida e escutada várias vezes para se descobrir novos detalhes.
Calice
(refrão)
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
(refrão)
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
(refrão)
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
(refrão)
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguem me esqueça
(postagem 164)
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